as encruzilhadas

Por vezes assaltam-me encobertas recordações de mitos e realidades de juízes ou deuses que, de quando em quando, eu encontrava nas encruzilhadas nos meus caminhos solitários pelo campo, quase sempre nas dobras das tardes já encostadas à meia-luz, junto de algum monólito de alminhas, bárbaras ou devotas.
Era uma presença quase palpável, mas invisível. Eu sentia-a ali, vinda de muito longe, de tempos já sem memórias, sempre a mesma para todos quantos por lá passassem, idos ou vindos do seu próprio destino, e que sempre tiravam o chapéu ou gesticulavam uma benzedura, mergulhados num piedoso ou amedrontado recolhimento.
Só a essa hora aparecia, esse deus crepuscular, emergindo pouco a pouco não sei se do profundo da alma que se atemorizava, se da penumbra envolvente, se das entranhas do ser ancestral que era adorado numa prostração, num arrepio de medo recôndito. Surdos guinchos, rouquejos, zumbidos, volteavam na luz já coada, povoando o ar de frémitos de sobrenaturalidade.
Sobrava-me o azedo duma agastada impressão de idolatria, de arcaísmo, a esse deus dos ermos e taciturnos atravessamentos, no debruado do anoitecer!
As encruzilhadas, segundo a superstição popular, sempre foram lugares perigosos onde se reúnem e acoitam seres maléficos; perde-se no tempo o costume de tentar obter protecção divina ao atravessá-las, fosse com gestos rituais, como a persignação, fosse com a colocação de oratórios às alminhas do Purgatório com feitios e materiais diversos, decoradas com uma cruz ou a figura de um santo.
É tenção cuidar da Vida, que ela é a soma de muitas encruzilhadas.

solicitude para estender os olhos

Olhar a Natureza é um modo de a ouvir.
Ouvindo-a, parece-me um estranho instrumento no qual todos os sons correspondem a todas as cordas sensíveis e secretas que estão em nós e que vibram em sinfonias, que cada um as vai ouvindo e entendendo a seu modo.
Tudo isso, enquanto ela vai criando fascinações para além dos saberes.
Então, achamos que a Natureza é grande nas coisas que cria.
E maior ainda nas coisas grandes que cria.
E, depois, um dia qualquer, descobrimos que é grandíssima nas pequenas coisas.