meter a mão ao bolso


Em África, durante a comissão de serviço militar, o pessoal de voo usava uma espécie de macacão (conhecido pelo jargão de combinação de voo), que tinha a particularidade de ter uns quantos bolsos nas pernadas, especialmente um em cada lateral e frente das ilhargas e outros tantos em cada perna. Além, claro, dos outros espalhados pela anca, peito, antebraços e nádegas. Eu sempre achei fascinante essa espécie de interminável armazém ambulante!…

Talvez por viver arrebatado por esse deslumbramento nunca sabia o que iria encontrar em qualquer que fosse o bolso onde metesse a mão. Isto para dizer que só uma vez na vida, alguns anos mais tarde, aliviei o bolso de alguém e, ainda assim, talvez por mera distracção, foi o meu próprio bolso.
O meu gesto até pode ser, com alguma justeza, descrito deste modo, pois ao tirar as coisas do bolso eu tive, pelo menos, uma das emoções do gatuno: a mais total ignorância e a mais excitante curiosidade sobre o que iria encontrar…
Naquele dia eu estava no comboio em direcção a Barca D’Alva e a viagem prometia ser longa.
Entardecia e lá fora a terra e o céu tinham a mesma monotonia de uma tela pintada com um pincel incolor, enquanto a chuva se entretinha a rabiscar recados nos vidros das janelas. Não tinha comigo livros ou jornais. O único reclame era o que estava lá ao fundo da carruagem e apenas dizia que eu devia pedir em toda a parte um licor das Beiras. Estiquei o olhar ao comprido do tabuado das paredes e do tecto, profundamente embiocado nesse fascinante tema que é a madeira. E quando eu começava a compreender, talvez, a mística abstrusa por que Jesus foi carpinteiro e não pedreiro ou padeiro, aí acudiu-me bruscamente, num relâmpago de memória, a ideia das entranhas dos meus bolsos.
Afinal, como sempre fora, carregava comigo sem o saber, um tesouro facundo e desconhecido! Coisas e loisas que tinha distribuídas pelas roupas, acima e abaixo, em diferentes lugares. E comecei a tirar o que estava nos bolsos. Primeiro saiu-me a parte final de uma entrada para o primeiro balcão do Trindade, junto com quatro bilhetes de autocarro. Era um começo: não tenho ideia qual foi o filme, mas os bilhetes tinham, no verso, um curto e impressivo ensaio científico sobre umas pílulas medicinais com alto teor de alho; em termos relativos, dada a minha displicência na altura, esses bilhetinhos de autocarro, na circunstância, podiam-se considerar uma pequena, mas selecta biblioteca científica. Repetisse aquela minha viagem ferroviária com o mesmo proveito de bilhetes por mais uns quantos meses (o que à data não era tão improvável assim…) e eu poderia perfeitamente visionar-me empenhado em bastas controvérsias sobre as virtudes e defeitos das ditas pílulas, compondo réplicas e tréplicas pró e contra elas, com base nos dados que os bilhetinhos me ministravam. Passou-me a lucubração quando tirei do bolso o canivete. Bom, um canivete, ocioso será dizê-lo, é coisa que, só por si, reclama um espesso volume de meditações morais. A faca é emblemática de uma das mais primaciais, entre as origens práticas, em que assenta, tal qual grossos e curtos pilares, a nossa história humana. Os metais (e tirei três clipes doutro bolso), o mistério desse primórdio a que chamamos de ferro, e do que, depois, dissemos ser aço, arrebataram-me para uma espécie de sonho (aqui intercalei um pequeno papel ratado a uma folha A4, lembro-me, onde se lia verificar as pilhas do relógio, ir ao Fraga comprar filme para carregar os rolos da Konica e falar com o Lopes), que me levou a fantasiar entre obscuros e húmidos bosques, onde o primeiro homem, pelo meio de todos os calhaus, tropeçou nessa pedra estranha. Sentia-me no cerne das batalhas, primeiro com achas, depois gumes de sílex até deparar com armaduras de osso e bronze. Foi por essa altura que descobri, no bolso seguinte, um isqueiro zipo e uma caixita de alumínio com dois compridos Saridon. Depois de ter escutado malhos a bater em todas as bigornas do mundo, consegui percepcionar as espadas das guerras feudais (não era por acaso que no bolso acima estavam guardados dois botões metálicos e amarelados, que eram de um casaco azul de trespasse que já não me serve). Confundi-me um pouco com toda a baralhada que foi a revolução industrial e voltei a olhar o canivete. Que, afinal, é apenas uma espada curta. Ou, melhor dito, uma faca oculta (estava esquecido!, não tinha a mínima ideia de que tinha naquele bolso uma cautela da lotaria de Junho passado. Cinco meses! e voltei a guardá-la não vá o papelucho estar premiado). Com ele aberto, demorei um pouco a olhar aquela língua brilhante e terrível a que chamamos lâmina e pensei que, talvez, ela fosse um dos mais antigos símbolos da necessidade humana. Engano, puro engano. É que nesse preciso momento dei com uma carteira de fósforos no bolso direito das calças. O fogo!, o fogo, pois claro, é ainda mais forte do que o aço: a chama, essa feroz e antiquíssima deusa, que todos amámos e não ousamos tocar. Foi quando descobri um toco de giz num bolso traseiro e, de repente, foi como que uma visão fulgurante de toda a arte, de Atenas a Veneza ou a Paris e a todo o lugar com fulgor de criação. Encontrei uma agenda, uns poucos elásticos, uma lapiseira e uma caneta Pelikan. No bolso esquerdo do casaco umas quantas moedas (nenhuma tinha, porventura, a efígie de César, mas seria um óptimo legado de toda a ordem social e económica da sociedade humana) que me recordam… não, agora não!
Falta-me espaço e tempo para falar das moedas e de todo o resto que tenho nos bolsos, mais do que daí poderia inferir – é pena!, é pena!… Vem ali o revisor e posso garantir-vos que até agora ainda não consegui encontrar o raio do bilhete do comboio.

come-se?…


Havia um tempo antigo (cada vez mais…) no qual a alimentação era gerida por um braçado de conceitos descomplicados e de fácil alcance: comia-se o que houvesse, o que apetecia e sempre se sabia que se o codear está no começar, não era menos verdade que ao que de mais comer, abre-lhe o garfo a cova. Além disso… haja boa vida, que rugas tira.
Isto até certo dia. Pelo menos, para mim, que comecei a ver prazos de validade nisto e naquilo que ia encontrando no supermercado. Parecia um campo minado. Válido até, é bom de ver, muito simplesmente queria dizer morte após…
E dei comigo a, automaticamente, verificar os prazos de validade de tudo e mais alguma coisa, mesmo das garrafinhas de água mineral. Reparei que nas lojas, pequenas ou tipo pavilhão industrial, colocavam os iogurtes com prazo de validade até mais tarde, na parte de trás da prateleira, à frente daqueles que já com ar de monos, era preciso despachar depressinha. Por isso, tiro sempre os iogurtes lá dos fundos. Isto não é birra nem cisma de qualquer seita religiosa ou alimentícia. O facto é que deixei de comer frango, que agora é alimentado a hormonas e o resto, troquei umas coisas por outras, mas mesmo assim não estou, nem perto, daquele magote de praticantes da correcção alimentar. O meu credo é comida saudável, mas é preciso que saiba bem. Para muita gente, comer já não é um prazer; é uma complicadíssima mistela química. Já ouviram dizer que a batata-doce activa o hipocampo, aquele sítio do cérebro, que é assim tipo o avalista da nossa memória, ou que a casca da laranja pode impedir o crescimento das células cancerígenas? O estorvo é que essa coisa das verdades sobre alimentos são mais escorregadias do que areia pelos dedos. Há uns dias, um nutricionista de uma universidade já não sei de onde, demonstrava a importância da carne bovina como fonte de ferro. Então já não preciso de comer espinafres? E as cenouras? Entre o mais, que evita doenças degenerativas na visão mas, segundo sei, fazem mal ao pâncreas? Essa é que essa: os prosélitos ou futuros aderentes da alimentação esmerada e saudável, nunca têm a certeza de estar a adorar o santo certo. Nesta religião, os deuses mudam como o tempo e a teologia varia como o catavento. Vejam lá o exemplo da maçã: existe coisa mais saudável? Bom… a verdade é que por baixo daquela lindeza, polida, colorida e igualzinha uma a outra, é um produto altamente suspeito, cheio de pesticidas mais o resto. Além disso, diz-se agora, que as maçãs não orgânicas (?!…) são potencialmente fatais. Ao mesmo tempo, o especialista da universidade ali em frente, diz que seria preciso comer 150 maçãs por dia durante 100 anos para começar a sentir os primeiros sintomas de envenenamento. Dou por mim a pensar que esta generalizada e constante incerteza faz com que os paladinos do comer saudável fiquem com um ar um tanto coado e desengraçado. E não é de espantar: nunca se sabe se, por exemplo, as fibras, que é uma coiseca sine qua non na alimentação de vanguarda, não passarão, de hoje para amanhã, para a lista do não comer ou até vir a descobrir-se a careca daquelas biológicas verduras terem sido geneticamente manipuladas.
Entremear aqui a gracinha do Senhor Xavier, bonacheirão sexagenário que conheci há uns meses, ufano na sua popularidade de produzir o melhor bagaço de Melgaço. Ria com gosto ao propalar que o feito era do segredo, herança do seu avô. Um dia, defronte de uma cabidela, contou-me a pilhéria do seu segredo, que ao cabo é bem conhecido de familiares e amigos: A água que se usa na serpentina é dali, do cacho do gato, na nascente (uns poucos metros abaixo da nascente de um rio minhoto). Da torneira, dizia ele, nunca!
Mas voltando às verduras sadias: será que o nosso futuro serão aqueles tomates, encarnadinhos, luzidios e redondos, mas na verdade completamente sensaborões?
Lembrei-me deles a propósito dos que o Mário da Gieira ou a senhora Esmeralda Mendes me habituaram a recolhe-los da saquita que, de vez em quando, me penduram no portão. Amadurecidos pelo arejo fresco do monte e aconchegados por este sol lavado e sorridente, lá estão eles, variados na forma e na cor, mas todos sumarentos. Um regado!
E confesso, é verdade, nunca perguntei aos meus simpáticos vizinhos se usavam pesticidas ou não.