as encruzilhadas

Por vezes assaltam-me encobertas recordações de mitos e realidades de juízes ou deuses que, de quando em quando, eu encontrava nas encruzilhadas nos meus caminhos solitários pelo campo, quase sempre nas dobras das tardes já encostadas à meia-luz, junto de algum monólito de alminhas, bárbaras ou devotas.
Era uma presença quase palpável, mas invisível. Eu sentia-a ali, vinda de muito longe, de tempos já sem memórias, sempre a mesma para todos quantos por lá passassem, idos ou vindos do seu próprio destino, e que sempre tiravam o chapéu ou gesticulavam uma benzedura, mergulhados num piedoso ou amedrontado recolhimento.
Só a essa hora aparecia, esse deus crepuscular, emergindo pouco a pouco não sei se do profundo da alma que se atemorizava, se da penumbra envolvente, se das entranhas do ser ancestral que era adorado numa prostração, num arrepio de medo recôndito. Surdos guinchos, rouquejos, zumbidos, volteavam na luz já coada, povoando o ar de frémitos de sobrenaturalidade.
Sobrava-me o azedo duma agastada impressão de idolatria, de arcaísmo, a esse deus dos ermos e taciturnos atravessamentos, no debruado do anoitecer!
As encruzilhadas, segundo a superstição popular, sempre foram lugares perigosos onde se reúnem e acoitam seres maléficos; perde-se no tempo o costume de tentar obter protecção divina ao atravessá-las, fosse com gestos rituais, como a persignação, fosse com a colocação de oratórios às alminhas do Purgatório com feitios e materiais diversos, decoradas com uma cruz ou a figura de um santo.
É tenção cuidar da Vida, que ela é a soma de muitas encruzilhadas.

4 comentários sobre “as encruzilhadas

  1. Olinda Melo 21 Outubro, 2023 / 18:55

    Não há dúvida que “as há, ha´”. Mais vale prevenir do que remediar.
    Umas persignações, umas rezas para afastar seres maléficos …
    Não conhecia a superstição popular sobre as encruzilhadas.
    Confesso que não gostaria de estar num sítio ermo sem saber para
    que lado me virar.
    Como sempre, um texto maravilhoso.
    Abraço, caro Jorge Esteves.
    Olinda

  2. jorgesteves 20 Outubro, 2023 / 22:03

    João Coutinho,
    Pois, o Bartolomeu ainda as tem…
    Um abraço.

    Graça Peixoto
    À cinta, não. Mas vai no bolso…
    Obrigado, amiga.

    A todos bem-hajam.
    Abraços

  3. Graça Peixoto 14 Outubro, 2023 / 11:36

    Também anda com a navalha à cinta como o Malhadinhas, é? Tal e qual Jorge ❤
    Gosto muito.
    Abraço.

  4. João Coutinho 14 Outubro, 2023 / 00:47

    Não há muito tempo voltei a ver as suas fotografias das alminhas!
    Belo texto, amigo Jorge.
    Abraço