lugares antigos

Nos meus tempos de miúdo, o chão das nossas brincadeiras era um pouco além das casas, na ladeira que sobeja do monte da Senhora da Luz. Uma pequena quebrada farta de pinheiros e uns quantos castanheiros, bordejada de fetos, giestas e urzes, quase todo o ano agasalhados em fofos lençóis de caruma, brilhantes às nesgas de sol entardecido.
Na Primavera, as raparigas também vinham co’nós  e apanhavam margaridas para fazerem coroas e raminhos. Na beira da baixada corria a ribeira das cabras, que tinha um fundão junto a um penedo onde podíamos saltar para a água e às vezes as meninas punham-se aos gritos, no fingimento.

Lá para Maio andávamos aos grilos para as gaiolas que estavam vazias desde o Outono passado, se o vento ajudasse era lançar e esticar as estrelas de rabo e nas remansadas tardes de Verão a ribeira tinha pequenos peixes que estimulavam a nossa trapalhice na pesca, se não aparecesse um ou outro coelho mais afoito a ajustar connosco uma corrida maluca pelo arvoredo, sempre com um final feliz para o orelhas. Um carvalho já velho foi mesmo supimpa para fazer uma casa feita com umas tábuas que fomos arrebanhando aqui e ali; assim como também atinamos com umas cadeiras meias chochas, que um dia deixaram na berma da estrada. É verdade que nunca tivemos tempo para ir para a casa da árvore, mas fazia muito jeito quando uma chuveirada aparecia sem avisar.
Às trindades, sempre que o sol começava a puxar os cortinados do dia, era a altura de abalar até casa. Era o momento importante do dia: dirigíamo-nos, isso mesmo!, de carro. Feitos com tábuas de caixotes velhos das sardinhas ou do bacalhau, rolamentos comprados às prestações no adeleiro e, lá íamos, barranco abaixo até às fraldas do terreiro da igreja. Curta e acidentada corrida pela estrada improvisada no carreiro!…
Um dia tudo isso acabou. Uma vedação em rede nasceu desde a borda da estrada até lá acima, à volta e outra vez até cá abaixo. Depois chegaram umas camionetas e despejaram uns homens com pás, serras, picaretas, paus, areia, pedras, cascalho e bidões de piche.
A quebrada ficou sem árvores, sem giestas e margaridas. O sol deixou de fazer fintas aos pinheiros e os pássaros, as sardaniscas mais os grilos foram embora. Nasceram uns caminhos direitinhos e logo a seguir umas casas com passeios, alinhadas pelas bordas. Já estava tudo quase no fim quando apareceram outros dois homens: um alisou um pedaço de terra no fim de uma carreira de casas e espalhou uma saca de semente.
É para um relvado. – disse ele.
Vai daí o outro homem virou-se para aquele magote da canalha assarapantada, que éramos nós e disse:
Ali vai ter um escorrega e dois baloiços. A Câmara sabe bem que antes as crianças não tinham onde brincar.

uma casa no cimo do monte

 

 

 

 

 

 

 

Quando saí da estrada e entrei na subida pela florestal em direcção a casa, a tarde já se encolhia nas ribas mais a sul. À minha frente ainda tinha uma longa e sinuosa encosta que fazia a disjunção entre os tempos e as formas. Conforme ia subindo aquele declive empinado e enroscado, as proporções alongavam-se e os compassos criavam oportunidades de demoras e frouxidões. Isto, sem descanso para os olhos e os sentidos: carvalhos, pinheiros, castanheiros e bétulas ajeitam-se com giestas, urzes e fetos a bordejar os quatro quilómetros do estradão, enfeitados com golpes de asa de lavercas, melros, abelharucos, gaios, rouxinóis, perdizes por aqui e coelhos acolá, mais os mochos, bufos, corvos e uns pares de subidos milhafres a espiarem cobras e lagartos.
Há já algum tempo que ali, naquelas bandas derradeiras da serra, desfrutava de uma vida simples, no encanto de jamais ter sentido tédio, embora nada de diferente acontecesse por aquelas paragens.
Para trás, logo no começo da costeira, tinha ficado a venda do sôr Albano, mai-la catrefada de coisas que por lá havia, desde um saboroso café de saco, às vassouras de piaçaba, petróleo, barras de sabão azul e amarelo, arame, pás, cal, enxadas, forquilhas, cimento, serras, isto e mais aquilo, passando claro está, pelo corrupio de infusas, branco ou tinto, que iam bandeando entre a cavaqueira e o balcão. Lá em cima, chegando à cumeada, um apoucado de pequenas casas faziam a aldeia, que ficara parada e mansa, pelos meados do século passado: o casario separava-se por acanhados caminhos de pedra já gastas, uns quantos esqueletos de espigueiros e canastros que sussurravam histórias de desfolhadas, ajuntados com um cruzeiro mais um minguado lavadouro. Tudo permanecia envolto em melancolia, indiferente aos anos e às mudanças. O fumo espreguiçava-se pelos telhados, guardadores das memórias já lentas de quem vivia debaixo desse véu esbranquiçado. A electricidade chegou bem depois dos cravos de Abril, que a água, farta, serve as terras e toda a gente, alguma canalizada sim, da nascente que está para lá da surriba. Além das pessoas, há uns poucos gatos e menos cães, a comparar com um bom magote de cabras, ovelhas e vacas. Estas, vergadas à modernice, já não vão ao boi, vem antes o médico veterinário, com uma injecção que as torna prenhas com mais acerto. Por isso não há bois, que já ultrapassados na função e como não dão leite, assim não servem, nem rendem na venda. O mais, no mais duro dos socalcos, todos trabalham com todos para todos, que neste ajuste no amanho de tudo, a fazenda distribuída será mais farta.
Conheço toda a gente, toda a mesma gente que se espantou quando aqui me prantei há mais de dois anos e ainda se assarapantam por eu cá estar. Conheço, das ovelhas e das cabras, onde vão, quando comem, das vacas sei-lhes os nomes e da paciência que é preciso quando elas param a ruminar dúvidas ou pendências da vida de vaca, quedas e distraídas no meio do estradão de piche, a única via do lugarejo. Sabe-se quando vem o carteiro, a furgoneta do pão ou a outra do peixe; à conta de assunto, todos ficam atentos quando, lá ao fundo, um carro estranho levanta o sossego da poeira. Amiúde, pelas vespertinas, chegam-se-me ao portão novidades, pressentimentos ou sabenças de sol ou chuva, acarretadas numa sacada à mistura com batatas, cebolas, ovos, frutas ou legumes, qu’isto é tudo cá d’ardeia… 
As estações do ano diferem nos panoramas e nas dimensões que as coisas ganham. No Verão a noite fecha-se como se fosse um cenário de teatro: devagar, ao ritmo das emoções de quem viveu a peça; no Inverno a noite cai entressachada nos golpes da lâmina do machado a rachar a lenha. A Primavera espalha as cores como se fosse um pintor em exaltada inspiração; no Outono descabelam-se árvores e os vimes ao ritmo dos verdes e amarelos que se arroxeiam, torcem e acabam em suicídios nas aragens que se chegam, enroladas e frias vindas do lado norte.
Já o Verão dobrava as bordas da abalada, numa daquelas noites quentes em que até era justo deixar as crianças ficar acordadas um bocado mais tarde, as estrelas tomavam todas os seus lugares e enchiam o manto do céu, eu estava com mais três pessoas, junto ao tanque. Veio uma rapariga buscar uma lavadeira com roupa e aproximou-se uma idosa com dois sarrafos nos braços, enquanto nós debulhávamos palratório solto.
As estrelas fulgiam, como se fossem longínquas fogueiras na planície da noite: Orion com as suas Três-Marias, mais além a Cassiopeia e, mesmo apontada às cabeceiras da Peneda, via-se a Ursa Menor. Por um instante ou uma eternidade, perdi-me em espantos, até ao chofre do vislumbre de uma, outra e depois outra estrela cadente. Eram as Perseidas, em rasgos fundos, no seio desses abismos de coisa infinita que é o Universo.
Houve alguém que me disse: faça um pedido!
Num primeiro momento fiquei sem perceber o que aquela frase queria dizer. É que eu não era capaz de encontrar mais alguma coisa que eu quisesse.