uma casa no cimo do monte

 

 

 

 

 

 

 

Quando saí da estrada e entrei na subida pela florestal em direcção a casa, a tarde já se encolhia nas ribas mais a sul. À minha frente ainda tinha uma longa e sinuosa encosta que fazia a disjunção entre os tempos e as formas. Conforme ia subindo aquele declive empinado e enroscado, as proporções alongavam-se e os compassos criavam oportunidades de demoras e frouxidões. Isto, sem descanso para os olhos e os sentidos: carvalhos, pinheiros, castanheiros e bétulas ajeitam-se com giestas, urzes e fetos a bordejar os quatro quilómetros do estradão, enfeitados com golpes de asa de lavercas, melros, abelharucos, gaios, rouxinóis, perdizes por aqui e coelhos acolá, mais os mochos, bufos, corvos e uns pares de subidos milhafres a espiarem cobras e lagartos.
Há já algum tempo que ali, naquelas bandas derradeiras da serra, desfrutava de uma vida simples, no encanto de jamais ter sentido tédio, embora nada de diferente acontecesse por aquelas paragens.
Para trás, logo no começo da costeira, tinha ficado a venda do sôr Albano, mai-la catrefada de coisas que por lá havia, desde um saboroso café de saco, às vassouras de piaçaba, petróleo, barras de sabão azul e amarelo, arame, pás, cal, enxadas, forquilhas, cimento, serras, isto e mais aquilo, passando claro está, pelo corrupio de infusas, branco ou tinto, que iam bandeando entre a cavaqueira e o balcão. Lá em cima, chegando à cumeada, um apoucado de pequenas casas faziam a aldeia, que ficara parada e mansa, pelos meados do século passado: o casario separava-se por acanhados caminhos de pedra já gastas, uns quantos esqueletos de espigueiros e canastros que sussurravam histórias de desfolhadas, ajuntados com um cruzeiro mais um minguado lavadouro. Tudo permanecia envolto em melancolia, indiferente aos anos e às mudanças. O fumo espreguiçava-se pelos telhados, guardadores das memórias já lentas de quem vivia debaixo desse véu esbranquiçado. A electricidade chegou bem depois dos cravos de Abril, que a água, farta, serve as terras e toda a gente, alguma canalizada sim, da nascente que está para lá da surriba. Além das pessoas, há uns poucos gatos e menos cães, a comparar com um bom magote de cabras, ovelhas e vacas. Estas, vergadas à modernice, já não vão ao boi, vem antes o médico veterinário, com uma injecção que as torna prenhas com mais acerto. Por isso não há bois, que já ultrapassados na função e como não dão leite, assim não servem, nem rendem na venda. O mais, no mais duro dos socalcos, todos trabalham com todos para todos, que neste ajuste no amanho de tudo, a fazenda distribuída será mais farta.
Conheço toda a gente, toda a mesma gente que se espantou quando aqui me prantei há mais de dois anos e ainda se assarapantam por eu cá estar. Conheço, das ovelhas e das cabras, onde vão, quando comem, das vacas sei-lhes os nomes e da paciência que é preciso quando elas param a ruminar dúvidas ou pendências da vida de vaca, quedas e distraídas no meio do estradão de piche, a única via do lugarejo. Sabe-se quando vem o carteiro, a furgoneta do pão ou a outra do peixe; à conta de assunto, todos ficam atentos quando, lá ao fundo, um carro estranho levanta o sossego da poeira. Amiúde, pelas vespertinas, chegam-se-me ao portão novidades, pressentimentos ou sabenças de sol ou chuva, acarretadas numa sacada à mistura com batatas, cebolas, ovos, frutas ou legumes, qu’isto é tudo cá d’ardeia… 
As estações do ano diferem nos panoramas e nas dimensões que as coisas ganham. No Verão a noite fecha-se como se fosse um cenário de teatro: devagar, ao ritmo das emoções de quem viveu a peça; no Inverno a noite cai entressachada nos golpes da lâmina do machado a rachar a lenha. A Primavera espalha as cores como se fosse um pintor em exaltada inspiração; no Outono descabelam-se árvores e os vimes ao ritmo dos verdes e amarelos que se arroxeiam, torcem e acabam em suicídios nas aragens que se chegam, enroladas e frias vindas do lado norte.
Já o Verão dobrava as bordas da abalada, numa daquelas noites quentes em que até era justo deixar as crianças ficar acordadas um bocado mais tarde, as estrelas tomavam todas os seus lugares e enchiam o manto do céu, eu estava com mais três pessoas, junto ao tanque. Veio uma rapariga buscar uma lavadeira com roupa e aproximou-se uma idosa com dois sarrafos nos braços, enquanto nós debulhávamos palratório solto.
As estrelas fulgiam, como se fossem longínquas fogueiras na planície da noite: Orion com as suas Três-Marias, mais além a Cassiopeia e, mesmo apontada às cabeceiras da Peneda, via-se a Ursa Menor. Por um instante ou uma eternidade, perdi-me em espantos, até ao chofre do vislumbre de uma, outra e depois outra estrela cadente. Eram as Perseidas, em rasgos fundos, no seio desses abismos de coisa infinita que é o Universo.
Houve alguém que me disse: faça um pedido!
Num primeiro momento fiquei sem perceber o que aquela frase queria dizer. É que eu não era capaz de encontrar mais alguma coisa que eu quisesse.


11 comentários sobre “uma casa no cimo do monte

  1. Isabel Vieira 1 Novembro, 2023 / 19:18

    Estou deliciada. Como já disse e repito. Tu igual a ti próprio e ninguém a fazer sombra. Que esse lugarzinho pertinho do céu te continue a dar tudo. Abraço-te

  2. tb 23 Setembro, 2023 / 21:24

    Maravilha!

  3. jorgesteves 21 Setembro, 2023 / 14:27

    Ninha,
    enquanto escrevo delicio-me que te encantes.

    Elisabete,
    Exageros teus, amiga!…
    Até porque a aldeia não será assim tão perto.

    Bartolomeu,
    Pois é, já nos conhecemos. Há longos e bons anos, companheiro!
    O livro?, quando (se) o livro sair, eu digo-te. Fica selado.

    Sara,
    Não, não é para os lados, mas sim, passo por lá amiúde…

    João Coutinho,
    Acredito, acredito, já experimentei!

    Natália,
    Já andamos por cá há muitos anos, não acha Natália?…

    Ferreira Duarte,
    Pois podia ser, sim. Podia. Não será muito afastado, mas não é bem para esses lados…

    Olinda,
    Prazer o meu vê-la por aqui. Obrigado, e volte, volte sempre.

    A todos bem-hajam.
    Abraços

  4. Olinda Melo 19 Setembro, 2023 / 18:09

    Caro Jorge Esteves

    Já tinha saudades de ler os seus textos.
    Escritos com vagar, que nos dão conta de
    cada uma das coisas pelos caminhos fora,
    plantas e animais, até chegar ao céu infinito
    que, contemplando-o com as suas constelações,
    o que mais há-de uma pessoa querer.
    Assim a toada magnífica que imprime em
    tudo o que escreve.
    Um abraço amigo.
    Olinda

  5. Ferreira Duarte 17 Setembro, 2023 / 02:09

    Também eu me “assarapanto” com este belo texto, meu caro!
    E se vê a Ursa Maior sobre a Peneda, a sua aldeia será no Soajo?…
    Forte abraço
    Duarte

  6. Natália Machado 14 Setembro, 2023 / 21:03

    Nem Aquilino, nem Torga. É o Jorge que conheci nos primeiros anos deste século, nas escritas do Terravista. E assim tem sido ao longo de tantos anos, tantos belos textos de histórias e História. Obrigada, meu querido amigo!
    Abraço grande.
    Natália

  7. João Coutinho 14 Setembro, 2023 / 10:22

    Um texto a fazer inveja a quem vive em prédio de apartamentos.
    Abraço.

  8. Sara Nogueira 14 Setembro, 2023 / 00:09

    Como estou de acordo com a Elisabete não preciso de repetir. Mas apetece-me perguntar se a sua casa no monte não será ali para os lados de Romarigães, tantos devem ter sido os seus passeios com o mestre ):
    É sempre um prazer ler, Jorge.

  9. Bartolomeu Fernandes 13 Setembro, 2023 / 18:48

    Eu sabia que tinha de esperar com paciência. Já te conheço…
    Mas és como o vinho, és! Um destes dias meto-me à estrada até chegar ao Minho. Para já quero novas tuas, que já me aguçaste o paladar. E o livro, quando sai?
    Abraço, companheiro.

  10. Elisabete Castro 13 Setembro, 2023 / 01:30

    Ainda… a ler, de espanto pasmada. Torga, Aquilino, Eça. As serras e caminhos, as gentes e os bichos. O Jorge em hoje, numa aldeia perto de ti.

  11. Ninha 12 Setembro, 2023 / 23:17

    Que os teus escritos deliciem os teus leitores e que tu te encantes enquanto os escreves.