vou casar

O meu tio Arnaldo, depois de ter concluído dois anos de Direito, ao cabo de quatro passados em Coimbra, bem à larga das rédeas paternas na distância segura que o sepa­rava do Douro, resolveu por lá ficar uns tempos, à conta de mais uns estudos que ainda lhe eram precisos...
A vida ia correndo de feição, para ele e para as necessida­des que ia enovelando lá para casa, até ao dia em que, já sem grandes alternativas, pensou que um casamento em perspectiva sem­pre poderia vir a calhar para abiscoitar mais umas maquias extras vindas da Casa da Aparecida. E para começar a tramoia lá foi escrevendo que tomara a resolu­ção de casar, que a noiva era bem formosa, muito pren­dada e de boas famílias, gente das Beiras, fabricantes de têxteis, com rendas no Brasil e até tinha um primo brigadeiro no exército…
A mãe logo lhe respondeu, pressurosa e feliz. Uma carta que, muito anos mais tarde, eu havia de a ver da mão do tio Arnaldo, em serão na Aparecida, com a história contada à mesa, entre risadas e fungadelas, à mistura com uns nacos de sêmea, presunto e um jarro de vinho. Dizia a carta:
Meu querido filho:
Que esta te vá encontrar de saúde que nós por aqui bem felizmente. O teu pai é que andava um bocado aflito com o estropício do reumatismo, mas já vai melhor graças a Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu e ele ficamos muitos satisfeitos com a boa nova que nos dás e partilhamos da tua felicidade. Porque sabes bem que desde sempre o que pedia nas minhas novenas à Virgem era que tivesses sorte na Vida e que um dia, quando Deus Pai assim o quisesse, desposasses uma rapariga boa, honesta e temente a Deus. Meu querido filho, uma boa esposa é uma bênção do Céu, como te disse muitas vezes. Por isso, de tudo aquilo que nos escrevestes eu e o teu pai desejamos ver-vos casados muito em breve. Assim terás a teu lado uma companheira que partilhará contigo o melhor e o pior, que te amarará, dará filhos e que te confortará e fará da tua vida uma estrada longa e florida, assim o queira o Pai do Céu. Esperamos com muita ansiedade que nos digas mais notí­cias sobre esse grande passo que vais dar na tua vida, meu filho.
Recebe muitas saudades dos teus pais que estão desejosos de te abraçar e beijar.
A
carta deveria terminar assim, na assinatura da Dona Cândida, a mãe do tio Arnaldo. Só que, naquela velhinha folha de papel, redigida com uma letra certinha e arredon­dada, em tom azulado já muito esbatido, um pouquinho mais abaixo da assinatura, estavam escritas com outro tipo de letra, claramente garatujadas pela pressa, duas linhas que diziam:
A tua mãe foi lá baixo ao alpendre da cozinha chamar a Mariana para ir à venda comprar um selo. Deixa-te ficar solteiro, meu camelo!

5 comentários sobre “vou casar

  1. jorgesteves 9 Agosto, 2024 / 22:48

    Bartolomeu Fernandes
    Se não é meio século, só lhe devem faltar as franjas…
    Continuo a tentar propiciar momentos agradáveis aos amigos. E a ti também! Esquece o papel, ó chato!…
    Férias? Ainda não percebeste que há (já) quatro anos aqui, no cimo do monte, estou em férias?…
    Abração, companheiro.

    Ferreira Duarte
    Sim, sim. O meu tio Arnaldo era um folgazão. Mas com algum juízo…
    Por isso endireitou o caminho, claro. Mesmo que não fosse Direito!
    Abraço.

    Maria Amélia
    Só daquela vez, já que teria mesmo de ser, dada a endrominice da história… Mas, pouco faltou para um dia ir às Festas da Senhora da Agonia e encontrar por lá uma cachopa por quem perdeu os beiços (a minha tia).
    Fica o obrigado pelas palavras amigas.
    Abraço.

    Natália Machado
    Alegro-me com as notícias. Felicidades, amiga.
    É verdade, sim, que a casa é a mesma, onde no topo norte existia a denominada sala das andorinhas. Mas o tio não é o mesmo. Explicando: a casa, de família, era na altura propriedade do irmão mais velho da D. Cândida (mãe do tio Arnaldo), por isso tio do meu tio. O tio Juvelino que refiro na história das andorinhas…
    Abraço.

    A todos
    Bem-hajam

  2. Bartolomeu Fernandes 4 Agosto, 2024 / 23:11

    Há quantos anos te ouço contar histórias dos teus tios? Porque ainda temos o tio Juvelino… Penso que será á volta de meio século. Quantas pessoas já divertiste com essas histórias? Não sejas casmurro, põe-nas todas no papel!
    Férias, onde? Aparece, companheiro.
    Abração.

  3. Ferreira Duarte 2 Agosto, 2024 / 01:22

    Histórias sempre deliciosas, meu caro.
    E o seu tio, en(direito)u o caminho?
    Abraço, amigo Jorge.

  4. Maria Amélia 1 Agosto, 2024 / 22:32

    O seu tio Arnaldo atendeu ao aviso do pai?… 😵
    Sempre um renovado prazer em ler as suas histórias, Jorge.
    Abraço.

  5. Natália Machado 28 Julho, 2024 / 00:31

    Obrigado pelas suas palavras Jorge. Felizmente agora está tudo bem.
    Já li uma outra sua história passada nessa casa, por causa da sala que o seu tio guardava para as andorinhas. O seu modo tão divertido, mas gracioso de contar histórias, encanta-me meu amigo. Obrigado.
    Abraços