vaidades(z)… m(inhas), tuas e nossas

Se repararmos bem, as coisas mais estranhas, absurdas, improváveis ou até, pasme-se!, insignificantes, são as que agradam à vaidade humana.
Basta que alguém diga, por exemplo, não sei como consegues fazer isso, e no imediato sentimo-nos pateticamente inchados, importantes, mesmo que conscientes de que a admiração advém do facto de se estar em camisa sob um frio de rachar, atirar azeitonas ao ar e apanhá-las com a boca,  andar desembaraçadamente para trás, juntar as mãos nas costas, imitar lindamente o canto do rouxinol ou – agora um tanto em desuso – soprar rodinhas de fumo do cigarro…
Ninguém sabe explicar convincentemente por que razão elogiar essas parvalhices fazem com que nos sintamos tão ufanos e distintos, mas a verdade é que é assim mesmo: enchemo-nos de vento com a mais insignificante aragem.
Se nos debruçarmos brevemente sobre isso, depressa chegamos à conclusão de que os aplausos que mais nos arrebatam são os que nos emprestam qualidades, conhecimento ou técnicas (por mais diminutas ou estapafúrdias que sejam) e assim nos destacam do resto da humanidade.
Um dia, numa atabalhoada tentativa de jardinagem, fiquei com um finíssimo espinho de cacto espetado um pouco atrás da unha do indicador da mão esquerda. Pico que resistiu aos ataques convencionais da pinça, da água quente, da agulha, outra vez da pinça e da água, mais a pasta de ervas que era uma mezinha feita pela senhora Dorinda. Dias depois estava eu mais o dedo infectado na consulta da clínica com o médico a constatar que precisava de fazer um minúsculo corte para retirar o abrolho: corte que tinha o senão de ter de ser aviado sem anestesia, dada a impossibilidade dela ser aplicada naquele local.
Suportei a cena de talho mais as sequentes partes da extracção, desinfecção, isto e aquilo até o verdugo, finalmente, dizer que me portei com uma peituda valentia. Automaticamente deixei de ter dores e durante alguns dias andei palpitante, orgulhoso da vida e cheio de farelo. Não tardou muito que na sapataria, a empregada que me estava a impingir uns sapatos de canastra, dissesse que eu tinha um pé muito flexível e, de imediato, saí porta fora com um par preto e outro castanho daquela pelintrice que acabou nos fundos da tulha na garagem. O raio é que a nossa vaidade é, afinal, uma chama que se alimenta com este tipo de ninharias, e mais!, tanto pelo que temos como pelo que não temos. Há quem se gabe de nunca ter tido um dor de ouvidos, como se isso fosse uma coisa para a qual qualquer badameco tivesse activamente contribuído! Ou, então, ao contrário, sofremos horrivelmente de enxaquecas e, a acrescentar, se conseguimos por em dúvida o médico, então aí ficamos positivamente acima das coisas vulgares e conhecidas deste e do outro mundo!
Daí à exacerbação da cagança é um pequenininho passo. O espelho diz que sou um protótipo de beleza, toca a encher as redes sociais com a minha fronha de juventude há muito perdida, o meu telemóvel tira fotografias, logo sou fotógrafo, espalho carradas de caçurrices, especialmente as sélfis, a mamã dizia que eu tinha muito jeitinho para as redacções, por isso tenho veia para a escrita, bora lá a sustentar a chusma de vigários armados em editoras, estive de férias no Algarve acampado ao lado de um casal inglês, passei logo a falar muito mal o português…
Também temos as nossas pequenas fraquezas, aquelas que sempre confessamos a fingir muita pena de ser assim: não sou capaz de memorizar nomes, esqueço-me muito, especialmente daquilo que prometo, é terrível mas raramente me lembro de dizer essas bagatelas tipo bom dia, obrigado, faz favor ou com licença, não percebo nada de arte (ou futebol, depende da plateia e circunstâncias), ai credo não consigo ser pontual, não sou mesmo capaz, pronto! Sempre a milhas de atinar que, o que faço, é espalhar má educação a rodos. E então fazer qualquer coisa antes de tomar o café da manhã, ui, credo!, isso é absolutamente impossível!…
Acho que estas confissões das nossas próprias faltas, embora feitas com um tom deslavado de queixume a disfarçar um pedantismo pataroco, realmente fazem-nos sentir diferentes, vividos, importantes.

Diria até, burlescamente, quase românticos.
Mas se olhar bem, completamente imbecis.
(imagem: selfie, desenho de Stefann, Bélgica)


2 comentários sobre “vaidades(z)… m(inhas), tuas e nossas

  1. Daniel Carvalho 16 Setembro, 2024 / 19:42

    Certeiro, certeiro, meu caro.
    Mas eu cá acho que tinha toda a razão para se sentir com uma peituda valentia. Essa de abrir o dedo à facada a sangue frio, eu cá por mim acho que desatava aos berros!
    Aí pelo cimo do monte está a salvo dos incêndios? Espero bem que sim.
    Abraço.

  2. Maria Amélia 15 Setembro, 2024 / 22:15

    Verdades, verdadinhas, Jorge. A praga das mãozinhas no ar a tirar fotografias e o pessoalinho a mostrar-se e a revirar-se no Instagram, no Tik Tok e no Facebook, já enjoa. E os malcriados também.
    Vou fazer a transferência e mandar-lhe a direcção. Obrigado.
    Abraço.