é tudo relativo


O Afonso sempre que podia ia passar o fim-de-semana a Adrão, uma pequena aldeia encafuada no bucho da Peneda. Saíra de lá de quarta-classe feita rumo a Miragaia, no Porto, à casa dos tios, onde se acoitou até à formatura em computação científica. Viu os tios mingar de olhos coalhados de orgulho no seu menino, levou-os ao ce­mitério, hoje guarda a casa e as recordações, a par de ser assistente na faculdade. E, sempre que o tempo é de jeito ou ferrete de saudade, a gana leva-o numa pressa até Adrão. Por lá estão os caminhos de cor, a comida boa, a casa do seu berço, a escola da Dona Clarinda e os amigos de sempre. En­tre eles o Albertino, seu velho companheiro de carteira na primária e que há muito tempo assentou pelas bandas de Braga.  Ora o Albertino tem um filho, irrequieto e vivaço cachopo de catorze anos, portador de duma deficiência cognitiva que os médicos ainda se desentendem entre associar à sindrome de Savant ou Asperger. O Daniel, é o nome dele, por qualquer razão ou nenhuma, passou a colar-se ao Afonso nos vespertinos passeios aos brejos em redor da aldeia. Sem balhestros na pernada, mesmo que o moço, se mais não lhe bastasse, também fosse cego de nascença.

Na tarde daquele sábado, já com a ponta do cabeço de Sobelho toda tinta de sol vermelho, iam os dois pelo carreiro que vai levar até às Ouriças.
– Já viste o filme ‘A Teoria de Tudo’?... – perguntou o rapaz.
– Não. Mas, mais ou menos, conheço a história do Stephen Hawking.
– Gostei na barra!… Ainda tentei ler um bocadito o livro dele, mas… – parou a caminhada, volteou os olhos apagados, des­prendeu-se de qualquer incómodo no raciocínio e retomou o caminho e a conversa – …olha lá: assim, tipo com palavras simples, ‘tás nessa?, explicas-me, mesmo, o que é isso da Teoria da Relatividade? Dá?…
O Afonso tropeçou em qualquer calhau imaginário, porque deu um salto. Olhou-o como quem olha um marciano verde. En­gasgou-se, mas logo se recompôs e, bruscamente, trocou-lhe o fio à conversa:

– Apetecia-me beber um copo de leite.
– Não me respondeste!…   Leite?! Espera lá… Sei o que é beber, mas é cu­rioso, nunca ninguém me explicou bem o que é leite…
– É um líquido branco. – foi o que lhe saiu.

– Ah! Líquido, eu conheço – disse o rapaz – mas branco… como é a cor?
– É a cor das penas de um ganso.
– Penas sei o que são; ganso é que não. É o quê?…
– Ganso? É uma ave. Uma ave de pescoço torto. – ia respon­dendo, atabalhoado, um bocado ao ritmo dos pés pela vereda.

– Pescoço, claro que sei o que é – riu-se – mas torto… torto como?!
Afonso já estava a esgotar os exemplos. E a paciência. Sem re­flectir bem no que estava a fazer, travou-lhe o passo, segu­rando-lhe o braço. Percebeu-lhe uma ligeira tremura. Esticou-lhe o braço e disse-lhe:

– Isto é um braço direito. É recto.
Depois, de modo cuidado, curvou-lhe o braço. E acrescen­tou:

– Assim, o braço está curvo, está torto. Percebeste? – largou-o, com uma suave palmada nas costas.
O rapazola, virou-se para o Afonso, esboçou um sorriso gaiato e disse com um ar satisfeito:
– Ah!… Então agora já sei o que é leite!…  

8 comentários sobre “é tudo relativo

  1. jorgesteves 21 Agosto, 2024 / 23:21

    Ferreira Duarte
    Obrigado, Duarte. É sempre um prazer as suas palavras amigas.
    Abraço.

    Cândida Ferraz
    Espero sinceramente que continue a estar tudo bem. Ele e todos na sua envolvência merecem a alegria e a Paz. Muitas felicidades.
    Abraço.

    Beatriz Caldeira
    Alegra-me que assim seja, Beatriz.
    Abraço.

    Rita Ribeiro de Sousa
    Também me surpreendeu, confesso. Ainda estava um tanto distante disso.
    É, Rita, o João é muito (demais) perspicaz…
    Abraço.

    Bartolomeu Fernandes
    Bastidores é contigo… E, claro, de fotografia é limpimho, limpinho que sabes bem mais do que eu.
    Vou pergunta à I.A. se sabe de todas as tuas qualidades, D. Quixote!
    Saúde, amigão.

    João Coutinho
    Seja qual for o ponto certo, João, grato por essa parceria com a I.A…
    Abraço.

    Mário Mateus
    Ora, ora!…, o que foi descobrir, amigo Mário!
    Onde isso nos vai levar, acho que seria uma excelente conversa!
    Por agora, o meu agradecimento pela amizade e pelas palavras amigas.
    Abraço.

    A todos
    Bem-hajam

  2. Ferreira Duarte 17 Agosto, 2024 / 23:42

    Gostei imenso desta sua crónica. Comungo a ideia do João. Por isso a sua crónica se torna mais interessante e importante.
    Abraço.

  3. Cândida Ferraz 17 Agosto, 2024 / 23:11

    Tenho um familiar com a síndroma de Savant. O seu grande prazer é divertir toda a gente com as suas capacidades de ‘fazer contas’ e ‘dizer páginas de muitos livros’. Mas tem muita dificuldade em comunicar e manter-se calmo. Quando se enerva, frequentemente repete o seu ralhete “Nunca gostei de ti a acho que nunca vou deixar de gostar”. Mas, percebi que o Jorge sabe, ele é uma jóia de rapaz. Obrigado por esta lembrança, amigo.

  4. Beatriz Caldeira 17 Agosto, 2024 / 23:07

    Excelente texto, Jorge.
    Saio daqui sempre mais cheia. Digo isto sentidamente, creia.
    Beijos.

  5. Rita Ribeiro de Sousa 17 Agosto, 2024 / 22:50

    Fiquei espantada com a IA, mesmo que ainda não tivesse visto nada sobre as suas possibilidades. Uma análise que me pareceu muito bem feita até.
    Acho que o João Coutinho tem toda a razão quanto ao Daniel, não é Jorge?
    Abraço

  6. Bartolomeu Fernandes 17 Agosto, 2024 / 21:42

    Como tenho o privilegio de conhecer os bastidores da tua crónica, posso dizer que fizeste um lindo retrato do Daniel. Reconhecidos os teus méritos de fotógrafo, rapaz!
    A resposta da I.A. também já conhecia. Acho até que podia dizer mais.
    O que é preciso também dizer a propósito do teu livro é que não acertaste com a editora, que se tem portado muito, mas muito mal com o teu livro. Que merecia quem percebesse do ofício.
    Abraço, companheiro.

  7. João Coutinho 16 Agosto, 2024 / 23:05

    Julgo perceber nesta sua crónica uma indisfarçada homenagem ao Daniel ou a alguém se a escrita pesar mais ou menos para a ficção. Mas, seja qual for o ponto certo, a verdade é que a crónica é uma escrita cheia de beleza.
    Mais não digo, porque quero acrescentar que a IA aqui referida não exagerou uma vírgula no merecimento do elogio ao livro e ao autor.
    Abraço.

  8. Mário Mateus 15 Agosto, 2024 / 23:17

    Por curiosidade perguntei a essa coisa da I.A. sobre o seu livro. A resposta facilitou-me a vida. Como já o li, transcrevo e assino por baixo:
    ‘Jorge Esteves, que é um reconhecido linguista e especialista em etimologia, explora as origens, significados e evolução das palavras em português. O livro se debruça sobre as raízes das palavras, sua formação ao longo do tempo e as influências que contribuíram para a riqueza do vocabulário português.
    Este tipo de obra é especialmente valioso para quem se interessa por linguística, história da língua e pela curiosidade em entender como as palavras que usamos diariamente se desenvolveram e adquiriram os significados que têm hoje. Assim, É Letra é um convite ao aprofundamento no estudo da língua portuguesa através da análise detalhada e informada das palavras.’
    E depois de ler mais esta crónica só falta acrescentar que a escrita é de ‘mão cheia’, como sempre, meu caro Jorge.
    Abraço