o Bilhete de Identidade

O cheiro da pólvora dos campos de Flandres ainda não se tinha esvaecido, quando João Canto e Castro substituiu o assassinado Sidónio Pais na Presidência da I República. Seria pelo punho dele que o Bilhete de Identidade era introduzido em Portugal, em 14 de Julho de 1919.
Idos do Quartel de Infantaria 3, o Quartel da Atalaia, como era conhecido em Valença, o sargento Edmundo mais um aspençada(1) assentaram arraiais em Melgaço. Por ordens superiores, tinham a incumbência de rastrear os cidadãos que não conseguissem apresentar certidão de nascimento, necessária para os efeitos exigidos pela nova determinação.
Em certa ocasião do sua função encontraram um idoso em Paderne, que rejubilou ao saber que, com o novo documento podia, finalmente, justificar o direito a uma pensão. A conversa do sargento Edmundo com António Evangelista, assim se chamava o homem, ocorreu mais ou menos assim…
– Então onde é que o senhor nasceu?
– Nos perros do couto na Senhora da Orada…
– E vossemecê não tem registo de nascimento, porquê?
– Ora!, eu já fui o quinto e o meu pai, no começo, andou a ver do padre e como foi difícil, ele desistiu. Despois não se chateou mais! – sorriu o velho.
– Bom… bom, não, isso é mau; mas vamos lá: ao menos sabe em que data nasceu?
– Ui!… Não. Sei lá. – respondeu como se falasse com ele próprio.
– E quando é que saiu do couto?
– Isso sei. Como em casa se passava muita larica, pisguei-me aos 14 anos… – e acrescentou – nas Carvalhiças, p’ra onde fui guardar cabras, diziam que eu tinha cara de moço p’ra essa idade. – riu.
– Ficou por lá…
-19 anos certinhos. Despois o meu patrão levou-me p’ra Caminha e amochei nas traineiras dele e do Zarolho, onde estive 25 anos. Mais ou menos… – pôs na boca um trejeito de dúvida.
– Sim… e daí para onde foi? – continuou o sargento.
– Voltei p’ra Melgaço, ali p’ra Bilhões da Serra. Um dia soube que eram precisos homens p’ra guardar os pinheiros e castanheiros. E por lá andei 17 anos. Isso. Dali vim p’ra esta casa. P’ra parar!... – e deu uma risada.
Está bem. E há quanto tempo vive aqui?…
O velhote ia a responder, mas calou-se, Virou-se para a porta da saleta e gritou para a cozinha:
Ó Maria das Dores, há quanto tempo a gente se casou?…
– Trinta e quê?…
Virou-se para o militar e confirmou:
– Trinta e quatro anos! – e sussurrou – muito ano!
O sargento escrevinhou mais um bocado no caderninho onde estava a tomar os seus apontamentos, a dada altura suspirou, pousou lápis e disse:
Ora somando tudo o que me disse, você é homem aí para uns 109 anos! – ia dizendo vagarosamente.
O comentário imediato de António Evangelista:
– Meus Deus, como o tempo voa!…

1 – naquele tempo, aspençada era a mais baixa graduação militar, inferior a cabo, mas acima de soldado, na altura diferenciado pela habilitação de saber ler e escrever.

é tudo relativo


O Afonso sempre que podia ia passar o fim-de-semana a Adrão, uma pequena aldeia encafuada no bucho da Peneda. Saíra de lá de quarta-classe feita rumo a Miragaia, no Porto, à casa dos tios, onde se acoitou até à formatura em computação científica. Viu os tios mingar de olhos coalhados de orgulho no seu menino, levou-os ao ce­mitério, hoje guarda a casa e as recordações, a par de ser assistente na faculdade. E, sempre que o tempo é de jeito ou ferrete de saudade, a gana leva-o numa pressa até Adrão. Por lá estão os caminhos de cor, a comida boa, a casa do seu berço, a escola da Dona Clarinda e os amigos de sempre. En­tre eles o Albertino, seu velho companheiro de carteira na primária e que há muito tempo assentou pelas bandas de Braga.  Ora o Albertino tem um filho, irrequieto e vivaço cachopo de catorze anos, portador de duma deficiência cognitiva que os médicos ainda se desentendem entre associar à sindrome de Savant ou Asperger. O Daniel, é o nome dele, por qualquer razão ou nenhuma, passou a colar-se ao Afonso nos vespertinos passeios aos brejos em redor da aldeia. Sem balhestros na pernada, mesmo que o moço, se mais não lhe bastasse, também fosse cego de nascença.

Na tarde daquele sábado, já com a ponta do cabeço de Sobelho toda tinta de sol vermelho, iam os dois pelo carreiro que vai levar até às Ouriças.
– Já viste o filme ‘A Teoria de Tudo’?... – perguntou o rapaz.
– Não. Mas, mais ou menos, conheço a história do Stephen Hawking.
– Gostei na barra!… Ainda tentei ler um bocadito o livro dele, mas… – parou a caminhada, volteou os olhos apagados, des­prendeu-se de qualquer incómodo no raciocínio e retomou o caminho e a conversa – …olha lá: assim, tipo com palavras simples, ‘tás nessa?, explicas-me, mesmo, o que é isso da Teoria da Relatividade? Dá?…
O Afonso tropeçou em qualquer calhau imaginário, porque deu um salto. Olhou-o como quem olha um marciano verde. En­gasgou-se, mas logo se recompôs e, bruscamente, trocou-lhe o fio à conversa:

– Apetecia-me beber um copo de leite.
– Não me respondeste!…   Leite?! Espera lá… Sei o que é beber, mas é cu­rioso, nunca ninguém me explicou bem o que é leite…
– É um líquido branco. – foi o que lhe saiu.

– Ah! Líquido, eu conheço – disse o rapaz – mas branco… como é a cor?
– É a cor das penas de um ganso.
– Penas sei o que são; ganso é que não. É o quê?…
– Ganso? É uma ave. Uma ave de pescoço torto. – ia respon­dendo, atabalhoado, um bocado ao ritmo dos pés pela vereda.

– Pescoço, claro que sei o que é – riu-se – mas torto… torto como?!
Afonso já estava a esgotar os exemplos. E a paciência. Sem re­flectir bem no que estava a fazer, travou-lhe o passo, segu­rando-lhe o braço. Percebeu-lhe uma ligeira tremura. Esticou-lhe o braço e disse-lhe:

– Isto é um braço direito. É recto.
Depois, de modo cuidado, curvou-lhe o braço. E acrescen­tou:

– Assim, o braço está curvo, está torto. Percebeste? – largou-o, com uma suave palmada nas costas.
O rapazola, virou-se para o Afonso, esboçou um sorriso gaiato e disse com um ar satisfeito:
– Ah!… Então agora já sei o que é leite!…